A odisseia do Palácio Guanabara
Conta-se que, em 1921, ao pisar no Brasil pela primeira vez após mais de trinta anos de exílio, o Príncipe Gastão de Orleans, Conde d’Eu, esposo da ex-herdeira do trono brasileiro, Dona Isabel, insistiu em visitar o Palácio Guanabara que, durante o período Imperial, havia sido sua residência e onde, portanto, havia passado a maioria de seu tempo no país que, em decorrência de seu casamento, adotou como pátria. Prostrado diante do portão, impedido de voltar à sua casa, saudoso, relembrou dos momentos lá vividos em família e ao ter avistado as palmeiras que ele e sua esposa haviam plantado e que ainda lá estavam, chorou.
Já àquela época a disputa judicial entre a Família Imperial do Brasil e a União pela posse do Palácio Guanabara, hoje sede do Governo Estadual do Rio de Janeiro, havia completado um quarto de século. A lide continua em 2018, sendo um dos casos mais ímpares e curiosos, bem como um dos mais longos, no Judiciário brasileiro.
O caso é aparentemente banal, sendo desapropriação indireta que os interessados questionam na Justiça. Mas há uma peculiaridade, pois, a desapropriação surge em um momento crucial de transição política nacional, sendo fruto dos eventos que se iniciaram com o golpe militar de 15 de novembro de 1889. Deposto o regime parlamentar monárquico e exilada a dinastia, fez-se necessário aos anseios da nascente república presidencialista, extirpar qualquer lembrança do passado Imperial, para que assim se consolidasse, sem oposição. Dentre tais lembranças, a presença física da família real, por meio dos bens de raiz por eles aqui deixados, era um espinho no calcanhar republicano.
Inicialmente as propriedades do Imperador Dom Pedro II foram confiscadas por força do decreto nº 78-A que o bania em 1889. Curiosamente, no entanto, anos se passaram até que república lançasse os olhos ao então nominado Paço Isabel, lacrado e sob os cuidados dos procuradores da Princesa Isabel. Somente em agosto 1891, com o decreto nº 447, o governo federal tentou executar a tomada do palácio. Inicialmente o governo não obteve sucesso em razão de decisões judiciais desfavoráveis e pareceres de renomados juristas. O argumento básico era que, por mais que a Família Imperial tivesse perdido seus direitos e privilégios políticos, apolíticos, a revolução política de 1889, consolidada com a Constituição de 1891, não afetou os direitos privados de propriedade da antiga dinastia. Assim, até 1894 a posse da Família Imperial sobre o palácio não fora turbada.
A ditadura Floriano Peixoto acirrou a instabilidade política e reavivou sentimentos pela restauração do antigo regime. No contexto da Revolta da Armada, invadiu-se o palácio às nove horas da noite do dia 23 de maio de 1894, por militares florianistas. Inutilmente, o governo federal tentou legitimar o confisco por meios judiciais, recebendo resposta negativa do Supremo Tribunal Federal – STF.
Como a União não acatou a decisão do STF, a Princesa Isabel e o Conde d’Eu ingressaram com ação possessória em 1895. Após longas aventuras o processo ainda está tramitando e se espera uma decisão do Superior Tribunal de Justiça – STJ, embora não seja visível o fim do processo.
Desenrolaram-se, ao longo dos 120 anos que seguiram diversos andamentos processuais e factuais, dentre os quais a doação do Palácio pela União ao Estado do Rio de Janeiro e a interposição de uma segunda ação, reivindicatória, movida pelos filhos e netos de Dona Isabel. Ocorreu também a perda dos autos do processo no STF por 70 anos, fazendo com que se chegasse até o estado atual da falta de uma resposta jurisdicional definitiva.
Embora curioso, o caso não é uma jabuticaba brasileira: a Grécia, no ano 2000, perdeu na Corte Europeia de Direitos Humanos – CIDH um caso contra seu ex-Rei, Constantino II, no qual esse pleiteava indenização dos bens que foram confiscados da Família Real Grega com sua deposição. Após anos de insucesso nos tribunais nacionais e uma série de leis que pretendiam resolver a questão sem indenizar os membros da ex-família real por suas propriedades perdidas, a Corte europeia obrigou a Grécia a pagar a devida indenização.
Esses casos pertencem à vasta problemática da justiça de transição. No Brasil estamos acostumados a considerar a justiça de transição como questão de responsabilização penal de agressores ou de indenização de quem sofreu violência durante o antigo regime ou o período de transição. Mas a experiência jurídica mundial mostra que a justiça de transição abrange problemas de direito privado, como a privação de propriedade ou a vedação de atuação econômica de adversários.
No Brasil houve passos sucessivos para superar traumas da transição política da monarquia para a república: em 1921 extinguiu-se o exílio e o confisco dos bens imperiais; em 1988, a Constituição permitiu a rediscussão do regime monárquico que foi objeto da consulta popular de 1993. Contudo, continuam problemas de justiça de transição no direito privado, como mostra o caso do Palácio Guanabara, eternizado pela morosidade do Judiciário que beira a denegação de justiça.
Com o julgamento do Recurso Especial, interposto pela Família Imperial Brasileira, pelo STJ, o que se espera que aconteça muito em breve, ainda neste semestre, mais um passo será dado, embora não definitivo, para superar esse longo trauma.
A odisseia pode ser longa, mas deve ter um fim.
Guilherme De Faria Nicastro – Advogado no escritório Machado Meyer Advogados, bacharel em Direito com formação complementar em Relações Internacionais pela Escola de Direito de São Paulo da FGV (2017)
Dimitri Dimoulis – Professor de Direito da Escola de Direito de São Paulo da FGV, Pós-doutor pela Univ. Saarland (1996). Doutor em Direito pela mesma Universidade (1994). Mestre em Direito público pela Univ. Paris-I (Panthéon-Sorbonne) (1989).