Os 27 tribunais estaduais e do Distrito Federal têm permitido a penhora dos salários de devedores para pagamento de obrigações não alimentares, uma possibilidade contrária à legislação aplicável.
Levantamento feito pela revista eletrônica Consultor Jurídico mostra que o posicionamento foi assimilado com base em precedentes do Superior Tribunal de Justiça, especialmente o EREsp 1.874.222, julgado pela Corte Especial em abril do ano passado. Neste julgado a corte superior decidiu pela possibilidade de flexibilizar a regra do artigo 833, parágrafo 2º, do Código de Processo Civil, que veda a penhora de salários, exceto para o pagamento de prestações alimentícias e para remunerações que ultrapassem 50 salários mínimos mensais.
O problema que resta é que não existem critérios sobre como a flexibilização deve ser feita, o que tem levado desembargadores estaduais e distritais a adotar uma miríade de entendimentos. A uniformização do tema poderá ser promovida pelo próprio STJ, que vai estabelecer tese vinculante sob o rito dos recursos repetitivos. O Tema 1.230 dos repetitivos visará a “definir o alcance da exceção da regra da impenhorabilidade de salário para efeito de pagamento de dívidas não alimentares, inclusive quando a renda do devedor for inferior a 50 salários mínimos”.
Dada a quantidade de processos sobre endividamento em um país de superendividados, alguns tribunais tomaram a iniciativa de buscar uma uniformização. Dois deles julgaram o tema em incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR).
Trata-se de um instrumento semelhante ao dos recursos repetitivos do STJ, por meio do qual o tribunal fixa uma tese em temas de efetiva repetição de processos e risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica.
O Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) foi um deles. A 2ª Seção Cível da corte concluiu que é permitida, de forma excepcional, a penhora do salário para pagar dívida não alimentar, desde que o percentual não ultrapasse o limite de 30% da verba líquida (clique aqui para ler o acórdão). Esse número é o mesmo usado pela Lei 10.820/2003 para limitar o desconto no salário nos casos de empréstimo consignado.
Outro tribunal a usar o IRDR foi o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul (TJMS), que também permitiu a mitigação da regra de impenhorabilidade dos salários com o limite de 30% sobre os vencimentos, “desde que a constrição não comprometa a subsistência do devedor” (clique aqui para ler o acórdão). Esse é o critério mais popular. Nenhuma das decisões analisadas pela ConJur autorizou a penhora de mais de 30% do salário. Outros tribunais a usar esse limite são os de Mato Grosso, Pará e Maranhão.
No TJ de Goiás (TJGO), um acórdão da 3ª Câmara Cível adotou o limite de 30% porque, nesse montante, é possível presumir a preservação da subsistência digna do devedor, especialmente porque ele nada alegou a respeito na ação.
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) é o único a adotar um critério numérico. Acórdão recente da 34ª Câmara de Direito Privado analisou a jurisprudência do STJ e concluiu que, se o devedor recebe até cinco salários mínimos (R$ 7 mil), o salário é sempre impenhorável. Já se os vencimentos estiverem entre cinco e 50 salários mínimos (R$ 70,6 mil), a penhora vai depender das particularidades. A maioria das cortes, no entanto, tem optado por essa análise caso a caso.
O Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR), por exemplo, recusou a uniformização ao não admitir uma proposta de IRDR em julgamento feito pelo Órgão Especial. Relator da matéria, o desembargador Jorge Wagih Massad afirmou que uma tese não seria cabível porque a suposta divergência no padrão decisório das câmaras do tribunal não é fruto de concepções distintas de Justiça.
“O dualismo decisório está intimamente relacionado com as nuances fáticas das demandas julgadas pelos órgãos fracionários. Não há, portanto, diversidade de orientação jurídica entre câmaras, mas distinta qualificação dos fatos que servem de subsídio para que o órgão adote uma determinada razão.”
No TJ do Rio de Janeiro (TJRJ), a orientação adotada pela 17ª Câmara de Direito Privado indica que a situação em que a impenhorabilidade representa um abuso de direito do devedor requer firmeza do Judiciário — logo, caberá a penhora do salário. Essa firmeza é maior em algumas cortes do que em outras. A ConJur identificou acórdãos que admitem a penhora de parte do salário de pessoas que recebem valores módicos.
A 3ª Câmara Cível do TJ da Bahia (TJBA), por exemplo, considerou adequada a penhora de 20% do salário de uma devedora que recebe R$ 1,9 mil por mês, de modo a fazer o pagamento da dívida sem comprometer sua existência digna, segundo os julgadores. A 1ª Câmara Cível do TJ de Tocantins (TJTO) mandou penhorar 30% do salário de uma servidora pública, de R$ 3,9 mil. E a 2ª Câmara Cível do TJ do Piauí (TJPI) entendeu ser possível a penhora de 30% dos vencimentos de uma pessoa que recebe R$ 2,7 mil, até o pagamento integral da dívida, que naquele momento era de R$ 39,2 mil.
Outra grande questão frequentemente enfrentada pelos tribunais brasileiros é a seguinte: a quem cabe comprovar que a penhora ameaça ou não a subsistência digna do devedor e de sua família? Há uma linha, adotada pela 14ª Câmara Cível do TJ-PR, segundo a qual essa comprovação é de responsabilidade do credor, enquanto autor do pedido, conforme o artigo 373, inciso I, do CPC. Outros tribunais, como os de Rio Grande do Sul, Espírito Santo, Tocantins, Amazonas, Roraima e Pará, têm acórdãos que conferem esse ônus ao próprio devedor, que é quem mais facilmente poderia fazer a prova.
Frequentemente, essa posição vem baseada no artigo 854, parágrafo 3º, inciso I, do CPC, segundo o qual cabe ao executado comprovar que as quantias tornadas indisponíveis são impenhoráveis. É essa a jurisprudência da 1ª Câmara Especial do TJ de Rondônia (TJRO).
Quando a 7ª Turma Cível do TJ-DF decidiu desse jeito, o voto vencido do desembargador Getúlio Moraes Oliveira trouxe considerações relevantes sobre o tema (clique aqui para ler o acórdão). Ele argumentou que não seria razoável impor ao devedor provar aquilo que a própria lei já lhe conferiu (a impenhorabilidade). Caberia ao credor, para afastar a regra legal, demonstrar a potência financeira da outra parte.
“Todavia, como as exceções, para sua observância, terminam por gerar outras exceções, creio que seria razoável que, antes de se efetuar a penhora, pelo menos se intimasse o devedor, dando-lhe conhecimento da pretensão do credor e facultando-lhe prazo para impugnar o pedido.”
Há, ainda, os tribunais mais flexíveis. Um acórdão da 2ª Câmara Cível do TJ do Acre (TJAC) primeiro disse que o credor não comprovou que exauriu outras possibilidades de satisfação do crédito, nem mostrou a ausência de prejuízo na penhora do salário do devedor. Ainda assim, permitiu a penhora em 15% do salário do devedor, com o objetivo de “não criar uma proteção desarrazoada ao devedor em detrimento do direito fundamental à efetividade dos provimentos jurisdicionais e à segurança jurídica do credor”.
Com base em matéria publicada pelo Conjur em https://www.conjur.com.br/tribunais-permitem-penhora-de-salarios-mas-falta-uniformizar-criterios